“O Deus da Bíblia sempre falou às pessoas através de sua cultura. Os personagens bíblicos entenderam a mensagem de Deus em seu próprio contexto cultural e compartilharam essa mensagem em seu próprio idioma”, por Marcelo Vargas em Comentário Bíblico Latino-americano
A seguir, você lerá um artigo extraído do Comentário Bíblico Latino-americano (CBLA), obra inédita cuja elaboração envolveu teólogos que representam diferentes nacionalidades, culturas e ministérios da América Latina. O projeto inovador e de alta relevância para a igreja do Brasil e do continente revela a força e o vigor de uma teologia que alia ampla dimensão missionária e evangelizadora, honestidade intelectual, fidelidade ao texto da Palavra revelada e a mais rigorosa pertinência contextual.
Tendo como editor geral o teólogo equatoriano C. René Padilla (1932–2021), o CBLA reúne dezenas de artigos temáticos, aplicações para a vida diária, centenas de questões para reflexão e incentiva o leitor e a leitora a se aprofundarem no conhecimento da Palavra de Deus.
No trecho a seguir, você conhecerá um dos mais de 100 artigos da publicação, que abordam questões que estão na pauta do dia, em temas como: Aborto provocado; Bioética e biotecnologia; Divórcio e novo casamento; Eutanásia; Feminismo; Globalização; Identidade Sexual; Justiça social; Masculinidades e machismo; Meio Ambiente; Mercado religioso; Missão transcultural; OVNIs e vida extraterrestre; Patriotismo e nacionalismo; Popularidade e manipulação; Pornografia; Povos nativos; Racismo; Os sinais dos últimos tempos; Religiosidade popular, entre outros.
Ao final do conteúdo, você encontrará links para adquirir o Comentário Bíblico Latino-americano e informações relacionadas à obra. Boa leitura!
Teologia Indígena
Por Marcelo Vargas, articulista do Comentário Bíblico Latino-americano
Fazer teologia nas comunidades latino-americanas tem sido uma tarefa sempre presente na tradição indígena oral e escrita. O indígena, por natureza, dedica-se a perceber e a experimentar, mais que a pensar, o sobrenatural. Interpreta e dá sentido à sua vida em relação com o espiritual. Consequentemente, sua reflexão teológica não é um “trabalho profissional”, mas parte integral de sua existência.
A denominada “teologia indígena” ou “teologia índia” foi se configurando como um modo de fazer teologia na igreja da América Latina. Consiste em pensar as coisas de Deus e as coisas mais profundas da vida e da história humana, não apenas segundo os padrões do conhecimento ocidental, mas segundo as categorias de conhecimento surgidas da própria cultura e tradição religiosa indígena. Ainda que esta seja diferente, pode estabelecer um diálogo proveitoso com outras modalidades teológicas do cristianismo.
Mas, que tipo de teologia indígena está sendo pensada? Aquela que relaciona as Escrituras com as culturas latino-americanas e, portanto, busca caminhos nos quais o evangelho de Jesus Cristo seja relevante para as culturas dessa região, sem cair em simplificações do que isso significa. A consideração da cosmovisão própria da cultura indígena é fundamental para o entendimento de quem são, de onde vêm e para onde vão os indígenas. O que os define e os molda é tudo o que está neles e ao seu redor.
Todos, quando nos convertemos, sejamos indígenas ou não, entregamos a Cristo, como Senhor, tudo o que está em nós. Quando nossa cultura, indígena ou não, se coloca sob a luz das Escrituras, suas luzes e sombras intrínsecas são reveladas e, então, passamos a ser definidos já não somente por tradições herdadas, mas por tradições interpretadas e transformadas pela Palavra de Deus.
O Deus da Bíblia sempre falou às pessoas através de sua cultura. Os personagens bíblicos entenderam a mensagem de Deus em seu próprio contexto cultural e compartilharam essa mensagem em seu próprio idioma. Nos tempos do AT, Deus usou imagens, conceitos e termos culturais quando falou por meio de seus profetas (Is 5.1-7; Jr 2.13; 18.1-17). As imagens pictóricas usadas eram familiares e estavam orientadas para as pessoas e a cultura de seu tempo.
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Igualmente, no NT, as parábolas de Jesus são verdades simples sobre o reino de Deus expressas em palavras e formas de pensamento da cultura da época (Mt 13.1-52). Paulo usou ditos gregos quando pregou no contexto helênico: “lutar o bom combate” (1Tm 6.12); “terminar a corrida” (2Tm 4.7); “ganhar uma coroa imperecível” (1Co 9.25). Como imagens próprias da cultura grega, essas expressões comunicavam poderosamente o que o apóstolo queria transmitir.
Para o público judeu, Paulo também adotou e reinterpretou conceitos tais como o da aliança e da circuncisão (Rm 2.25-29; Fp 3.3). Esse processo de adaptação por parte de uma cultura hóspede que traz à luz novos significados foi considerado sempre um processo natural e necessário para a expansão do evangelho. Quando as boas-novas de Jesus Cristo eram proclamadas em uma nova nação, lançavam raízes em sua cultura.
Como, então, fazer teologia indígena juntando a Escritura à cultura? É meramente questão de extrair princípios da Bíblia e aplicá-los a esta ou aquela cultura? A encarnação da Palavra de Deus em nossa própria cultura é um longo caminho no qual, passo a passo, a
vida de uma se encontra com a vida da outra. A cultura encontra a ação de Deus, que levanta uma comunidade de crentes, e isso inclui sua identidade e sua história (At 10.34; 44-48; 15.1-32).
Em uma atmosfera de família, a medida passa a ser não mais a singularidade da etnia, mas o próprio Cristo (Gl 3.28). Esse caminho se estende ao longo de várias gerações, tanto as passadas como a contemporânea. Para entender na totalidade a encarnação do evangelho em uma cultura particular, precisamos conhecer o percurso da antiga nação de Israel, suas tragédias e triunfos, até experimentar a singularidade e a majestade de Deus. Assim também, em terras latino-americanas, precisamos entender como a missão de Deus avança e se completa.
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Nesse sentido, é necessário compreender que a categoria “indígena” (que fundamenta o conceito de “índio”) é uma imposição vinda do exterior que nos mascarou, encobrindo nossa identidade original, considerando-a inferior e subalterna por vários séculos. Ao mesmo tempo, isso também nos uniu na dor, na resistência, na elaboração teológica, possibilitando que aflorassem as convergências sociais, culturais e religiosas entre os diferentes povos do continente submetidos à opressão mas desejosos de libertação, muito em perspectiva com a mensagem bíblica (Êx 2.23b-25).
Nesse caso, há também a necessidade de fazer conexões com a espiritualidade e com o pensamento religioso de caráter ancestral não cristão, mas buscando fazer ponte com a teologia cristã. Portanto, a reflexão teológica indígena pode nutrir hoje, com suas utopias religiosas, a esperança dos povos originários para uma vida plena e para a construção de um mundo melhor e de igualdade em concordância com o que é proposto pelas Escrituras.
Assim, a “teologia indígena” aparece também como uma variante das diversas correntes de uma teologia redentora, tendo em consideração a variável étnico-cultural ao assumir a raiz dos povos nativos ou originários do continente e a luta contra a marginalização histórica que eles têm sofrido.
O movimento indígena, como movimento social, busca a libertação de diferentes formas de aculturação estrangeirizante, proclamando a recuperação do poder político que lhes cabe e a ascensão de sua cultura livre de modos colonialistas e dominadores. Nesse contexto, a teologia indígena, além de ser voz de protesto dos povos originários, pouco a pouco foi se convertendo em voz de proposta que articula o desejo de um futuro melhor que se soma ao de todos os pobres.
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