“Não há dedicação vertical ao Senhor sem compromisso local com a família do Senhor”, Rafael Balestra Cassiano (Rafael Pijama)
Convidamos autores e líderes da igreja evangélica brasileira para uma série intitulada “retorno ao básico”, com o objetivo de abordar temas centrais da fé cristã, como um convite a retomar as práticas espirituais que sustentam, direcionam e edificam. Por meio dos artigos da série, queremos chamar a atenção do leitor para o que é basilar e dá vigor à caminhada, alimenta a espiritualidade e nos aproxima de Deus, ao que é e deve ser simples.
No artigo a seguir, Rafael Balestra desperta nossa atenção para a importância das relações comunitárias, especialmente no que diz respeito a sermos parte de uma igreja e cuidados por um pastor. De fato, o cristão de nossos dias — sobretudo em meio a tantas ofertas de cultos on-line — pode se enganar ao pensar que já não precisa participar de uma igreja local e ser pastoreado e discipulado. Num contexto em que tende-se a virtualizar e terceirizar tudo para sistemas de respostas automáticas e interações concisas, o cristão não pode deixar de priorizar o relacionamento próximo e intencional com um pastor que o conheça, cuide e acompanhe.
Reflita conosco e seja edificado com esta reflexão de Rafael Balestra Cassiano.
Ser pastoreado e discipulado
Mas Deus, que conforta os desanimados, nos encorajou com a chegada de Tito (2Co 7.6).
Paulo escreve que foi consolado com a chegada de um amigo num momento de angústia, tribulação, abatimento e saudade. É interessante perceber que Paulo — o grande apóstolo que teve um encontro pessoal com Jesus e que nutria relacionamento íntimo com Deus e com o Espírito Santo — revela que é consolado com a chegada de Tito: um semelhante, um amigo de jornada. Isso não lhe chama a atenção?
Um ranking divulgado em 2019 pela Organização Mundial da Saúde (OMS)elencou ospaíses “mais ansiosos”. O Brasil despontou em primeiro lugar. O dado é chocante, já que o Brasil é reconhecidamente um lugar festivo, território de enorme riqueza natural em que não há tantos desastres naturais, solo em que “em se plantando, tudo dá”, como descrito por Pero Vaz de Caminha em suas cartas ao rei de Portugal. Como a população de uma terra assim pode ser a mais ansiosa do mundo?
Isso aponta para um adoecimento. Estamos nos tornando um povo individualista, egoísta, invejoso, comparativo, ansioso, mesquinho e solitário. Grande parte da população do Ocidente vive mais de 30% de sua vida em ambiente on-line. Estatísticas dizem que o brasileiro passa em torno de 10 horas de seu dia na Internet. Em referência mundial, o brasileiro está entre os que usam smartphone mais tempo por dia no mundo. Esses dados evidenciam que estamos ficando mais isolados e ensimesmados.
Ao elencar tais dados não objetivo trazer problemas que aparentemente não possuem solução. Mas revelar luz e impactar nossa vida. A Palavra de Deus prevê essa catástrofe e sua solução, pois Deus tem resposta para nossas crises, angústias e dores. O Senhor deu a vida, e ele tem um jeito para que essa vida seja vivida. Quando saímos do que foi projetado, os efeitos são desastrosos.
A natureza relacional do ser humano
Nosso Deus fez a humanidade a partir de uma natureza relacional. Gênesis revela para nós que Deus nos projetou com essa configuração. Quando lemos o relato de Gênesis nos deparamos com a expressão divina façamos, revelando que somos fruto da relação da Trindade, de forma que, para viver de acordo com nossa verdadeira identidade, somos destinados à vida comunitária.
Deus coloca a humanidade no mundo, em um ambiente de relacionamento com a natureza, com os animais e com o próprio Deus. Mas ele mesmo expressa que “não é bom” que o ser humano viva sozinho, ou seja, que não é pleno, não revela completamente o plano, pois o propósito é ser uma imagem visível que corresponde a uma semelhança invisível (a relação da Trindade).
Não passemos por essa verdade de forma despercebida. Isso é forte! Note: nem mesmo a relação do indivíduo com Deus era a completude do que Deus queria. O humano precisava de outro semelhante. Isso é o que Deus chama de “bom”. Isso é o que expressa a sua vontade. Isso é o que revela nossa semelhança com ele.
A necesidade do pastoreio e do discipulado
Diante de tais fatos, fica evidente a essencialidade do pastoreio mútuo e do discipulado em nossa dinâmica de vida; e claro, a partir de nossas igrejas locais. O pastor John Stott, em seu comentário à carta aos Efésios, nos chama a atenção para o fato de que Deus não está apenas fazendo um indivíduo novo em Cristo, mas uma sociedade nova, um povo novo, uma nova humanidade. As cartas de Pedro, e também Apocalipse, deixam claro que o cristão é um ser comunitário, que Deus não está enviando seu Filho para resgate de “indivíduos”, mas para resgatar “o povo”, “a família”, “a nação santa” de Deus.
Não há vida cristã sem senso comunitário, sem referência de pertencimento a um povo, sem consciência de família. É nosso impulso querer algo que é “para mim”, mas Deus nos insere numa dinâmica de “nós”. Durante a jornada de Jesus encarnado, vemos o desafio dos discípulos com essa questão. Eles querem um “Deus para mim”, querem privilégios, posições especiais, mas Jesus sempre os empurra na direção das relações, do cuidado mútuo, do “dois a dois”, da mesa, da bacia e toalha que lava um pé que não é o seu, mas de alguém.
Talvez o caso mais emblemático sobre isso esteja na conversa de Jesus com Pedro sobre o amor. Ali, Jesus diz para Pedro que a forma de amá-lo é cuidando dos irmãos. Ou seja, não há dedicação vertical ao Senhor sem compromisso local com a família do Senhor.
Jesus é nosso modelo
Você ama a Deus e quer agradá-lo? Não fuja do pastoreio, não viva na solidão, não busque autonomia e independência. Foi para esse lugar que nossos pais espirituais (Adão e Eva) foram, e sabemos bem qual foi o resultado. Isso “não é bom”! Esse não é o propósito. E, como diz 1Coríntios, é justamente por não discernir o corpo de Cristo, por “comer apressadamente”, sem esperar e considerar os irmãos, que muitos em nosso meio estão fracos e doentes.
Jesus é nosso modelo, Ele nos revela o padrão. Vemos em sua jornada terrena que sua vida foi revelar uma identidade relacional. Ele era Aquele que poderia ter feito tudo sozinho, mas decidiu se submeter a relações desafiadoras. Escolheu doze homens que não estavam prontos, teve uma agenda de vida marcada por encontros, e nos enviou para encontros: “vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os e ensinando-os”.
É esta a vida projetada para que nós vivamos: a partir do encontro pessoal com Jesus, passamos a conhecê-lo um pouco mais a cada dia através da dinâmica comunitária. Uma vida de encontros dados pelo Pai, mediados por Jesus e ligados pelo Espírito.
Sobre o autor:
Rafael Balestra Cassiano (o Rafael Pijama), marido da Yana Cassiano, pai do Victor e Aurora, pastor na Igreja Sal da Terra 90, coordenador do Movimento Mosaico, coautor do livro Igreja Sinfônica (Mundo Cristão), um felizardo homem de muitos amigos.
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3 Comentário
Judite Matos
Alegria e refrigério em tempos tão individualistas. Parabéns pela clareza e coesão do texto. Somos membros privilegiados desta família maravilhosa de Cristo!
Bruno
Que texto oportuno. A relação comunitária, de pastoreio mútuo, é basilar e parte de nossa identidade em Cristo!
Branna
É na comunhão que “o Senhor ordena bênção e vida para sempre” (sl 133).