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Série: “Retorno ao básico”: Ir à igreja

“Ao permanecermos sem participar do culto público, corremos o risco de transformar a facilidade de assistir a um culto em casa numa negação do testemunho da igreja.”, Ricardo Barbosa

Convidamos autores e líderes da igreja evangélica brasileira para uma série intitulada “retorno ao básico”, com o objetivo de abordar temas centrais da fé cristã, como um convite a retomar as práticas espirituais que sustentam, direcionam e edificam. Por meio dos artigos da série, queremos chamar a atenção do leitor para o que é basilar e dá vigor à caminhada, alimenta a espiritualidade e nos aproxima de Deus, ao que é e deve ser simples.

No artigo a seguir, Ricardo Barbosa de Sousa, pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília (DF), diretor do Centro Cristão de Estudos (DF) e autor de vários livros, aborda a importância do ato de ir à igreja como prática essencial da vida cristã — naturalmente, passadas as restrições sanitárias pela pandemia da COVID-19 — e elucida a relevância do culto público como um testemunho da igreja perante a comunidade local e as nações.

Culto eletrônico – adoração platônica

Ricardo Barbosa de Sousa

A partir de abril de 2020, vários estados e municípios no Brasil adotaram medidas de restrição e isolamento para combater o avanço da pandemia da COVID-19. Através dessas decisões das autoridades públicas e sanitárias, comércio, instituições públicas e privadas, escolas e igrejas foram fechados. Na medida em que a vacinação avançou, começaram os processos de flexibilização no funcionamento das instituições e, em particular, das igrejas.

Estamos no início de 2022, a maioria da população já foi vacinada, os protocolos de segurança vêm sendo flexibilizados, inclusive a realização de cultos presenciais com o aumento gradativo do número de fiéis. No entanto, a volta aos cultos, pelo menos em várias igrejas, não tem sido como o esperado, mesmo mantendo os protocolos de uso de máscaras, medição da temperatura corporal, distanciamento e álcool. Os motivos que causam o baixo retorno são vários. Não é nosso interesse investigá-los, mas entender o significado do culto público para o povo de Deus e o mundo.

O significado do culto público

N. T. Wright reconhece que, ao suspender temporariamente a realização do culto público e, com isso, começar a se reunir virtualmente, através dos cultos on-line, usando as diversas plataformas tecnológicas disponíveis, confirmou-se a tendência de muitos de achar que a fé é um assunto de natureza privada, que diz respeito a mim ou, quando muito, à minha família. Os recursos tecnológicos disponíveis são, sem sombra de dúvida, motivo de gratidão. No entanto, ao permanecermos sem participar do culto público, corremos o risco de transformar a facilidade de assistir a um culto em casa numa negação do testemunho da igreja.

“Ao permanecermos sem participar do culto público, corremos o risco de transformar a facilidade de assistir a um culto em casa numa negação do testemunho da igreja.”

Como afirma o Dr. N. T. Wright em seu livro Deus e a Pandemia, “ao dizer que aboliremos temporariamente o culto corporativo e nos reuniremos com outras pessoas apenas em cultos on-line, realizados ao vivo da sala de estar da casa do ministro, podemos dar a entender que, de fato, não passamos de um grupo de indivíduos com ideais semelhantes em busca de um passatempo arcano particular. Nesse contexto, o problema com a ‘adoração eletrônica’ é que ela acaba se transformando em uma ‘adoração platônica’, isto é, ‘sozinhos com todo o mundo’. Visto que já existem pressões culturais nessa direção, importa-nos reconhecer o perigo.”

A afirmação do Dr. N. T. Wright de que corremos o risco de transformar a “adoração eletrônica” em “adoração platônica” revela uma realidade que os cristãos e, particularmente, os líderes cristãos, devem considerar com extrema seriedade. Não se trata de um provável risco futuro, mas de uma realidade presente.

Vivemos um tempo de fé abstrata e espiritualidade subjetiva. O individualismo narcisista nega o valor da comunidade e transforma a Bíblia num manual apenas devocional e inspirativo ao retirar dela sua autoridade e seu caráter normativo. O virtual substitui o real, e o sacramento da eucaristia torna-se dispensável uma vez que o que importa é o “sentimento” da comunhão e não o reunir-se em torno da mesa para celebrar e testemunhar, juntos, o triunfo de Cristo sobre o pecado, a morte e os poderes.

Igreja

No Novo Testamento, a palavra para “igreja” era eclesia, uma expressão usada para designar uma assembleia pública. Não era uma palavra religiosa. Quando o povo de uma determinada cidade se reunia para debater algum assunto de interesse daquela cidade, davam o nome a essa reunião de eclesia. Os autores do Novo Testamento tomaram emprestado a mesma palavra para descreverem a reunião, o encontro ou a assembleia do povo de Deus para tratar dos assuntos relacionados a Deus e à proclamação do seu reino. Isso envolvia, sobretudo, o culto e a adoração pública como testemunho visível e audível do reconhecimento de que Jesus Cristo é o Senhor. A realização e participação do povo de Deus no culto público sempre foi um sinal da identidade única do povo da Nova Aliança.

“A realização e participação do povo de Deus no culto público sempre foi um sinal da identidade única do povo da Nova Aliança.”

Ricardo Barbosa

Não estou propondo que igrejas sejam irresponsáveis colocando em risco a saúde de seus membros e da sociedade, ignorando os perigos da pandemia, mas alertando para o risco de muitos cristãos se acostumarem, e até mesmo começarem a gostar de um estilo de vida que nega a vocação cristã. A “adoração platônica” traz a falsa sensação de que estamos juntos pelo fato de que podemos ver os rostos uns dos outros na tela do computador ou do celular, mas o fato é que estamos sozinhos em nossas casas.

É necessário lembrar que o Credo Apostólico afirma que, ao lado de nossa crença em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, no perdão dos pecados e na vida eterna, também cremos na Igreja. Essa Igreja do Credo não é um conceito abstrato, subjetivo, individualista. É a igreja de Éfeso, Corinto, Pérgamo. Igrejas em cidades concretas, endereços físicos, onde pessoas reais se encontram umas com as outras para adorar a Deus. As cartas a essas igrejas eram lidas comunitariamente. Graças a Deus, temos cópias dessas cartas para que cada cristão possa ler em casa, mas eram cartas escritas para um povo real, que se reunia em lugares públicos, para o testemunho do Deus vivo.

Frequentar um culto e ser membro de uma comunidade cristã

Gostaria de concluir com um testemunho de C. S. Lewis sobre a importância da participação dos cristãos no culto público. Fizeram-lhe a seguinte pergunta: “É necessário frequentar um culto ou ser membro de uma comunidade cristã para um modo cristão de vida?” Sua resposta nos ajuda a entender o valor da igreja e do culto público. Ele respondeu assim:

“Esta é uma pergunta que eu não posso responder. Minha própria experiência é que logo que eu me tornei um cristão, cerca de quatorze anos atrás, eu pensava que poderia me virar sozinho, retirando-me a meu quarto e lendo teologia, e não frequentava igrejas ou estudos bíblicos. Então, mais tarde, eu descobri que era o único modo de você agitar sua bandeira; e, naturalmente, eu descobri que isso significava ser um alvo.

“É extraordinário o quão inconveniente para sua família é você ter que acordar cedo para ir à Igreja. Não importa tanto se você tem que acordar cedo para qualquer outra coisa, mas se você acorda cedo para ir à igreja é algo egoísta de sua parte e você irrita todos na casa. Se há qualquer coisa no ensinamento do Novo Testamento que é na natureza de mandamento, é que você é obrigado a participar do Sacramento e você não pode fazer isso sem ir à igreja.

“Eu não gostava muito dos seus hinos, os quais eu considerava poemas de quinta categoria com música de sexta categoria. Mas, à medida que eu ia, eu via o grande mérito disso. Eu me vi diante de pessoas diferentes de aparência e educação, e meu conceito gradualmente começou a se desfazer. Eu percebi que os hinos (os quais eram apenas música de sexta categoria) eram, no entanto, cantados com tamanha devoção e entrega por um velho santo calçando botas de borracha no banco ao lado, e então você percebe que não está apto sequer para limpar aquelas botas. Isso o liberta de seu conceito solitário” [God in the Dock, C. S. Lewis].

 C. S. Lewis frequentou uma pequena igreja por trinta anos. Como ele mesmo reconhece, não havia nada de muito extraordinário nos cultos. Ele não gostava de inovações porque achava que elas tiravam a atenção daquilo que era mais importante num culto, Deus. Não gostava de mudanças na liturgia porque o deixava sem saber o que viria depois, e isso causava uma certa ansiedade. Porém, sua experiência demonstra que, com o passar dos anos, o hábito formado pela consciência da necessidade moldou seu caráter.

Adoramos, não porque isto nos faz bem — pode até fazer e espero que faça —, mas porque fomos criados por Deus e para Deus. Essa é nossa condição básica de seres humanos. Negar a adoração pública é negar o testemunho de Deus perante a cidade e as nações.

Sobre o autor:

Ricardo Barbosa de Sousa é casado com Maria Cristina há mais de 40 anos, é pai de Thiago e Arthur, e avô de três netos. É pastor há mais de 37 anos da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília (DF), e diretor do Centro Cristão de Estudos, que enfatiza a formação espiritual e a integração entre fé, cultura e trabalho. É autor de vários livros, entre eles o best-seller O caminho do coração. Estudou Teologia Espiritual no Regent College, em Vancouver, Canadá, onde conheceu o dr. James Houston, seu mentor nos últimos 28 anos.

Para ler outros artigos da Série “Retorno ao básico”, clique aqui.  

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