Confira nossa entrevista com Ricardo Alexandre, autor de “E a verdade os libertará”
Atendendo à proposta de disponibilizar obras que contextualizam a realidade do Brasil e do mundo, que ajudam os leitores a estabelecer diálogos entre diferentes grupos, tanto dentro quanto fora da igreja, a Editora Mundo Cristão acaba de lançar E a verdade os libertará: livro escrito por Ricardo Alexandre, jornalista, consultor, curador de eventos, autor de várias publicações, entre elas a aclamada biografia de Wilson Simonal, Nem vem que não tem (Editora Globo), ganhadora do Prêmio Jabuti 2010.
Em seu mais recente trabalho, Ricardo oferece aos leitores um novo olhar à discussão sobre as relações entre política, religião e sociedade e reúne dezesseis reflexões sobre as conexões entre o fenômeno político do bolsonarismo e uma de suas principais bases eleitorais, o movimento evangélico. Em E a verdade os libertará, o autor combina uma extensa e qualificada pesquisa jornalística com insights fundamentados nas Escrituras, para propor aos leitores uma experiência instigante da primeira à última página. Clique aqui e veja a sinopse da obra.
Para compartilhar com os leitores mais informações sobre lançamento, a Mundo Cristão entrevistou Ricardo Alexandre. No bate-papo, ele fala sobre o processo de elaboração da obra, contextualiza os objetivos que teve ao escrevê-la, deixa evidente a reflexão que deseja despertar e finaliza com uma mensagem aos leitores. Confira!
Mundo Cristão: E a verdade os libertará. Qual é o objetivo da obra? A quem ela é destinada?
O livro pretende ofertar um ponto de vista diferente para o debate público a respeito da relação entre política e religião no Brasil do Século 21. Esse olhar é o de um jornalista com intimidade com as redações, com as técnicas de comunicação, mas que também é um cristão de tradição evangélica. O livro foi escrito pensando nesse duplo enfoque também para o leitor.
Meu objetivo é que ele possa oferecer ao leitor cristão uma reflexão a respeito da subcultura evangélica que muitas vezes asfixia a própria mensagem de Jesus – por isso há no texto esse esforço de sempre recorrer à sabedoria bíblica. Por outro lado, eu quis que o livro servisse também ao leitor não cristão interessado em conhecer um olhar vindo de dentro desse demográfico chamado “evangélico” e entender nossos passivos históricos, nossas diferentes linhas teológicas e entender essa visão de mundo surgida a partir de tantas modas doutrinárias – e saber também o que o evangelho teria a dizer disso.
De que forma a publicação serve à sociedade brasileira e vem de encontro às suas atuais necessidades?
Eu quero acreditar que o livro leva reflexão pacífica, informação e autocrítica para um cenário repleto de certezas, desinformação, intransigência e preconceitos. Logo no início do livro, eu digo que não quero convencer ninguém a pensar como eu penso, mas entendemos, eu e a Editora Mundo Cristão, que o ponto de vista de alguém que manuseie o noticiário e a Bíblia com o mesmo respeito talvez possa jogar luz em aspectos obscuros tanto para cristãos quanto para não cristãos. A ideia é que o leitor saia mais maduro e mais tolerante com o divergente, porque eu realmente acredito que essa polarização tem sido artificializada e inflamada por gente que lucra com ela.
Quais foram os cuidados, técnicas e métodos utilizados durante composição do texto?
O livro tem como ponto de partida uma pergunta simples: o quanto da comunicação do candidato e do presidente Jair Bolsonaro mimetizam a comunicação de lideranças religiosas brasileiras? E o quanto desse recurso discursivo é de fato baseado no ensino de Jesus e dos apóstolos e o quanto ele é fruto da subcultura evangélica, dos vícios demográficos e modas doutrinárias que não têm nada a ver com o evangelho? Eu não coloco em questão a fé do presidente católico romano, nem dos filhos evangélicos dele, nem a fé do eleitor circunstancial de Bolsonaro ou mesmo do defensor ferrenho do presidente. Eu proponho uma análise de discurso e prática contrastados com as Escrituras Sagradas. A Bíblia é lâmpada para nosso caminho, certo? Que luz ela pode jogar nessa caminhada da sociedade? A partir disso, eu dividi o assunto em 16 tópicos maiores para o livro e outros 25 tópicos para o podcast. E estabeleci um processo de apuração jornalística, contrastando fontes, checando dados, mas sempre com essa finalidade de gerar reflexão.
E a verdade os libertará é um título instigante. O que há em seu pano de fundo?
Em primeiro lugar, a ideia é chamar a atenção para o fato de que um versículo bíblico está sendo usado como slogan político. Porque o uso que Bolsonaro faz do versículo aponta para ele mesmo – não como “a verdade”, mas como porta-voz da única verdade digna de crédito, diante das alegadas “mentiras” da oposição e da imprensa profissional.
Em segundo lugar, porque me chamou a atenção que, no raciocínio original do versículo, Jesus diz aos seus debatedores: “Vocês não entendem o que eu digo porque nem sequer me ouvem”. Fiquei assombrado como isso diz respeito ao Brasil do século 21, um universo onde todos temos o que dizer e tão pouco a ouvir.
Por último, porque eu realmente acredito que a cultura vigente, especialmente a algoritimização das redes sociais, tem nos empurrado para os extremos do espectro político, onde somos mais manipuláveis e onde nos entrincheiramos de ódio aos “inimigos”. Somos prisioneiros das ideologias desses extremos. Não queremos ouvir o outro, estamos cheios de certezas do tipo “é impossível ser cristão e ser de esquerda” ou “bolsonarista tem de tratar na porrada” etc. Enquanto isso, a mensagem de Jesus é: libertem-se. Tirem essa bola de ferro do pé para conhecer a verdade que não está nem em um extremo nem em outro. Não é possível olhar uma realidade tão complexa se não a olharmos de cima. Libertem-se.
E o que falar sobre o termo bolsonarismo? O que diria ao leitor que enxerga a eleição do termo como um viés opinativo? Aliás, ao escrever o livro, você pretendeu atacar ou defender a figura política em questão?
O sufixo “ismo” é usado em movimentos, certo? Pacifismo, ascetismo, romantismo, modernismo… E é fato que existe um movimento em torno de Jair Bolsonaro – ou, no mínimo, que tem Jair Bolsonaro como símbolo – que a história chamará de “bolsonarismo”, assim como tivemos o “getulismo” ou o “lulismo”. É um uso deliberado, opinativo no sentido de que a história ainda está em construção, e o uso do termo também.
Mas não é depreciativo, justamente porque o sentido de “bolsonarismo” ainda está em aberto – em 20 ou 30 anos, o “bolsonarismo” pode ser considerado um momento brilhante da história do Brasil, ou um momento de vergonha. Para o livro, tanto faz, porque o assunto é o papel da igreja dentro da construção disso, essa mistura de religião e política que se afasta dos ensinos de Jesus e dos apóstolos e que usa muito do que o evangelicalismo brasileiro tem de pior.
E no tocante à política e religião. Em sua opinião, quais são as principais incompreensões em torno dessa delicada relação e os devidos pontos de cuidado que todo cidadão religioso deve tomar para não errar ao votar ou ao engajar-se politicamente?
Da forma como eu creio que os apóstolos nos ensinam, o culto cristão, o sacrifício ao Deus Criador, se dá na vida cotidiana do cristão, e não nos limites do ambiente religioso. Isso é claríssimo em Romanos 12, mas também é um ensino construído em toda a Bíblia. Nesse sentido, eu acho que o grande erro é separar o mundo entre ambientes “religioso” e “secular” – essa ideia de que existe “música do mundo”, “trabalho secular”, “Casa do Senhor”, “dez por cento é de Deus” etc. Quando essa visão é transportada para o debate político, e quando ela vem contaminada pelo ensino da “Batalha espiritual” que é tão pressente no imaginário evangélico brasileiro, nós nos engajamos em campanhas que prometam diminuir o terreno “secular” e aumentar o terreno “religioso”. Simples como isso. Não posso crer nisso, porque todos sabemos que uma igreja pode ser profana mesmo sendo religiosa, e um artista de música popular pode tratar sua arte com muito mais sacralidade do que um artista gospel.
Assim, penso que o grande erro do eleitor cristão é sua tendência de apoiar os que usam acessórios religiosos e prometem ampliar o espaço da nossa religião, como se isso fosse o plano de Deus. O que a Bíblia ensina é que os candidatos deveriam tratar o exercício da vida pública como sagrado e honrar seu trabalho de político. Isso seria o culto a Deus segundo a Bíblia, e isso seria um político digno do nosso engajamento.
Aliás, há muito erro em torno da interpretação e aplicação do trecho bíblico de Romanos 13.1-2, que diz: “Todos devem sujeitar-se às autoridades, pois toda autoridade vem de Deus, e aqueles que ocupam cargos de autoridade foram ali colocados por ele. Portanto, quem se rebela contra a autoridade se rebela contra o Deus que a instituiu e será punido” (NVT). Alguns o utilizam erroneamente, dando a entender que uma liderança jamais deve ser questionada. Em sua opinião, quais precauções são pertinentes à sua interpretação?
Uma das coisas que mais me impressionam na sabedoria bíblica é como ela mantém estiradas tensões que precisam ser respeitadas. Por exemplo: a vontade de Deus é soberana, mas precisamos apresentar nossos pedidos em oração a ele; Deus pode intervir nas circunstâncias, mas nós devemos nos satisfazer independentemente delas; a prática cristã é baseada em preceitos morais, mas é baseada em justiça social e acolhimento dos necessitados; nossa relação com Deus tem sua lógica, mas tem muito de inexplicável. Essa riqueza, essa sabedoria, é algo por que me apaixono cada vez mais, e sinto que é algo que tem sido cada vez mais sacrificado no ringue das polarizações ideológicas.
Uma dessas tensões é entre respeito às autoridades, obediência civil, e um forte senso de justiça profética. No livro, conto casos na história moderna e na história bíblica, como exemplos de que isso pode, e deve coexistir. Nós oramos por nossas autoridades, nós reconhecemos que as esferas de poder existem para cooperar com o trabalho de Deus, mas nós jamais nos calaremos diante do exercício incompetente ou maldoso dessas mesmas autoridades.
Especialmente no atual contexto político brasileiro, observa-se uma profunda polarização, não raras vezes alimentada com hostilidade e falta de diálogo. É possível evitar essa “polarização tóxica”? Onde erram aqueles que militam com agressividade e intolerância, tanto na defesa quanto na resistência ao atual governo presidencial?
O ser humano sempre quer ter razão, e sempre foi assim. O que eu vejo é que as redes sociais potencializaram isso numa escala incontrolável. É uma doença, sem dúvida. Quem é de direita, fala com vocabulário da direita, lê blogs de direita, se relaciona com pessoas de direita e deixa rastros pela internet que são usados para alimentá-la com conteúdo cada vez mais radicais à direita. Quem é de esquerda frequenta lugares da esquerda, se recusa a ler pensadores da direita, abandona livros e artigos porque “isso é coisa de fascista” e curte conteúdos cada vez mais à esquerda. Eu fiz questão de incluir autores de ambos os espectros ideológicos – e também pensadores da ala mais conservadora e mais progressista da igreja – porque eu quero contribuir para me livrar dessa polarização tóxica. Ou, em outras palavras, eu quero me libertar dessa imposição, porque a verdade liberta. Há muita gente investindo pesado para me convencer que meus opositores são meus inimigos, que os que pensam diferentemente de mim são “inimigos da pátria”. Jesus não era assim, eu também não quero ser.
O que os leitores podem esperar do livro E a verdade os libertará?
Exercício de reflexão. Eu odiaria saber que um leitor concordou com tudo o que eu disse ou com tudo o que eu penso – isso é impossível e jamais foi meu objetivo. Minha proposta é colocar ideias para transitar, para serem discernidas junto com o leitor. Eu sinto que tanto tempo ensinamos que só existe o “sim” e o “não” que acabamos excluindo o debate, o exercício do pensamento. Por exemplo: quando eu pergunto “um pastor entra na prefeitura para pedir ou para oferecer algo?” eu não estou generalizando nem criticando, estou propondo uma reflexão para leitor, para os líderes, para os pastores, e até para mim mesmo. Minha igreja é assim? Eu sou assim? Qual é o caminho mais parecido com a mensagem de Jesus, dos profetas e dos apóstolos? É por isso que o livro traz 27 páginas de notas: para que o leitor vá até as mesmas fontes que eu usei e chegue às suas próprias conclusões.
Uma mensagem final aos leitores, tanto para os que apoiam o governo Bolsonaro quanto para os que o reprovam.
Eu não sei como o governo Bolsonaro entrará para a história – provavelmente com pontos positivos e negativos, como todos os governos. Mas uma das coisas que ele já fez foi ter enxergado esse enorme contingente demográfico conhecido como “evangélico”. Isso é um mérito que ninguém vai tirar dele. Até então, os evangélicos só interessavam em época de eleições e logo sumiam da mídia, dos discursos, dos debates – como se 30% da população brasileira simplesmente não existisse. Agora estamos com os microfones diante de nós e com os holofotes sobre nós. O que temos a dizer? Será que temos algo a oferecer ou a pedir? Será que sabemos o que queremos fazer no centro do poder ou só queremos o poder? Será que o nosso evangelho se resume a doutrinas sobre o porvir ou ele é capaz de redimir hoje um país profundamente marcado pela injustiça? Será que temos algo a dizer sobre relações trabalhistas, exploração do homem pelo homem, violência estrutural e sobre a dignidade humana ou nossas “boas novas” se resumem à uma pauta moral? Meu livro é sobre isso. Acho que minha mensagem final, no final, são mais reflexões do que qualquer outra coisa…
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4 Comentário
Murilo Correa
Muito pertinente ao momento que estamos vivendo. Isso quebra a religiosidade e o cristianismo prevalece.