Mais de uma década depois de seu lançamento, Feridos em nome de Deus continua sendo uma fonte de informação qualitativa para quem deseja saber mais sobre os reflexos do abuso emocional no âmbito da igreja
Em 2009, a Mundo Cristão lançou Feridos em nome de Deus, livro escrito pela jornalista Marília de Camargo César, um sucesso que logo chamou a atenção de leitores evangélicos e de outras denominações religiosas.
Na obra, Marília, apoiada em sua própria experiência, narra histórias de cristãos machucados emocionalmente que tiveram a fé lançada por terra em razão do convívio desvirtuado com pastores, líderes e outros membros da igreja. São histórias reais, com as quais o leitor pode se identificar.
Fruto de um cuidadoso trabalho jornalístico — que demandou a consulta a autoridades no campo da teologia, da psiquiatria, da psicologia e da filosofia e a escuta atenta a homens e mulheres traumatizados em sua experiência com lideranças eclesiásticas —, o livro é fonte de informação qualitativa para quem deseja saber mais sobre a questão do abuso emocional no âmbito das comunidades de fé.
Mais de uma década depois, Feridos em nome de Deus continua sendo um referencial na literatura cristã brasileira no tocante ao assunto. Para conversar acerca da longevidade da obra, entrevistamos Marília de Camargo César. No bate-papo, a autora compartilha fatos que delinearam a concepção do livro, toca em questões relacionadas à formação de líderes e deixa uma mensagem aos leitores MC. Confira!
Mundo Cristão: Feridos em nome de Deus, lançado inicialmente em 2009, permanece entre os sucessos do catálogo MC. Como você recebe esta notícia?
Marília: Com muita satisfação e alegria. Meu desejo sempre foi alcançar muitos corações com as histórias e reflexões do livro. Muitos leitores que me escrevem ainda hoje dizem que foram consolados pela leitura. Isto é muito gratificante para um autor.
Por que as reflexões que o livro evoca são importantes para a igreja evangélica brasileira, sobretudo numa década marcada por tensões ideológicas, notória polarização política, divisões potencializadas pelas redes sociais e contingências causadas pela pandemia?
Tão triste notar que temos, nós cristãos, nos especializado em produzir feridos, rebanhos de feridos. As redes sociais, que tanto poderiam servir para promover reconciliação, têm sido usadas aparentemente muito mais para aperfeiçoar mecanismos de agressão e discórdia. Creio que as reflexões do livro podem ser úteis especialmente para as lideranças, pois “A quem muito foi dado, muito será pedido; e a quem muito foi confiado, ainda mais será exigido”.
Conte-nos um pouco sobre o livro. Como nasceu a ideia de escrever sobre o assunto?
Feridos em nome de Deus é fruto de minhas experiências e relacionamentos vividos numa comunidade de fé que frequentei durante dez anos, e onde fui muito abençoada. Infelizmente, em algum momento, uma crise eclodiu na igreja e viemos a saber que muitos abusos estavam acontecendo ali, abusos de ordem espiritual e psicológica. Infelizmente, muitos irmãos deram as rédeas de suas próprias vidas nas mãos dos pastores, e estes, por conta de teologias que hoje enxergo como equivocadas, aparentemente gostaram bastante de controlar a vida do rebanho em todos os detalhes. Quando a crise evidenciou que havia muita coisa errada acontecendo ali, me vi, como jornalista, instigada a registrar os fatos. Sem, contudo, expor nomes ou denominações. Foi um registro histórico e para mim uma experiência muito libertadora.
E como se deu o processo de apuração e escrita da obra? Quais critérios e objetivos tinha em mente ao concebê-la?
Entrevistei vários membros da igreja, de outras igrejas com semelhantes problemas, reportando suas histórias em detalhes, como numa grande reportagem. Entrevistei pastores de várias correntes teológicas para analisar o fenômeno do abuso espiritual, além de psicólogos e sociólogos. A ideia era analisar a fundo e saber por que razão cristãos bem informados e racionais são levados a obedecer a seus pastores incondicionalmente, incorrendo, assim, em muitas decisões das quais irão se arrepender mais tarde.
Feridos em nome de Deus é um livro dedicado apenas a cristãos evangélicos?
Logo que foi lançado, me lembro de ter recebido mensagens de católicos e espíritas, relatando experiências parecidas. É um livro para toda comunidade de fé que tem líderes com sinais de messianismo e onipotência.
O que diria a quem está lendo esta entrevista e se sente ferido, desiludido e sem vontade de frequentar a igreja?
Esta pessoa tem quem a escute? Seria o caso de procurar ajuda profissional para poder rever tudo o que se passou e reconhecer suas próprias responsabilidades na situação? Já se perdoou? A pessoa que foi ferida pela religião precisa de um tempo para assimilar as experiências traumáticas, até voltar a desejar participar de uma igreja. A cura leva tempo. Muitos irmãos que conheci naquela comunidade demoraram bastante para retornar.
Feridos em nome de Deus também aborda questões relacionadas às lideranças, sobretudo o despreparo de pastores e líderes, seja numa perspectiva de formação teológica e ministerial, seja num âmbito emocional e espiritual. Dentre as realidades a que teve contato, poderia sinalizar duas necessidades prementes na formação de líderes e para as quais o livro pode trazer insights que auxiliem coordenadores de cursos, retiros e demais ações voltadas à formação ministerial?
Creio que os pastores precisam muito de um ambiente de escuta, de confidentes com quem possam dividir os fardos do pastoreio, que são muitos. Muitos estão sobrecarregados e, por serem tão idealizados por seus fiéis, se sentem pressionados e continuamente sob escrutínio. Duas necessidades das lideranças? Eu diria – ter um conselheiro confiável e espiritualmente maduro e ter uma formação teológica mais sólida.
Por fim, um convite a quem ainda não leu Feridos em nome de Deus e uma mensagem aos leitores da MC.
Se você anda decepcionado com a igreja evangélica, com os líderes, pastores, presbíteros, leia Feridos em nome de Deus. O livro não é uma fórmula mágica para acabar com esta decepção, mas nele você vai encontrar vozes de pessoas que, como você, se desiludiram profundamente, e as saídas que encontraram para lidar com suas feridas. Pode lhe ser muito útil.
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