Confira nosso bate-papo com o tradutor de “Uma confissão”, clássico de Liev Tolstói, e saiba mais sobre a curiosa arte de traduzir
Para celebrar o Dia do Tradutor, 30 de setembro, preparamos um conteúdo especial:
uma entrevista exclusiva com Rubens Figueiredo, professor, romancista e tradutor.
Premiado duas vezes com o Prêmio Jabuti de Literatura, Rubens é graduado em russo pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e traduziu, entre várias obras, Guerra e Paz e Anna Kariênina, de Liev Tostói.
Pela Mundo Cristão, traduziu o clássico Uma confissão, obra do mesmo autor.
No bate-papo, Rubens fala de sua experiência no âmbito literário, elucida alguns dilemas e alegrias do tradutor e compartilha curiosidades da profissão.
Ao final da entrevista, ele deixa conselhos para quem deseja atuar na área e uma mensagem aos leitores MC. Um conteúdo imperdível. Confira!
Mundo Cristão: Traduzir. O que é?
Rubens Figueiredo: Chamamos de tradução a versão de um texto escrito ou falado de um idioma para outro.
Mas esse processo tem raízes numa faculdade humana presente em nosso dia a dia, de várias maneiras, em atividades que não costumam levar o nome de tradução.
Por exemplo, como escritor, eu passei a considerar mais esclarecedor tratar meu trabalho de autor de textos originais como um exercício da tradução:
imagens, emoções, ideias, temores, dúvidas, crenças, questionamentos que, no início, existem ou podem existir em linguagem não verbal precisam ser convertidos para a linguagem verbal,
até se concretizarem num texto em língua portuguesa. Aliás, todos esses dados originais que constituem a fonte de um livro resistem a essa transposição, se opõem a isso,
pois não nasceram para viver como palavras – assim como um texto escrito num idioma não nasceu para ser lido em outra língua.
De outro lado, sempre que, numa conversa, alguém nos faz uma pergunta e paramos para pensar, nesse momento, a operação que fazemos é uma tradução:
impressões e raciocínios que, muitas vezes, precedem à dimensão verbal e se encontram organizados em outro sistema de linguagem precisam ser rapidamente transportados para o sistema da língua portuguesa.
E, vejam, não estou, aqui, usando a palavra tradução como metáfora: tudo isso também é tradução, propriamente falando.
Talvez não seja exagero dizer que, onde há linguagem, há sempre tradução.
Em sua opinião, quais são os principais dilemas e alegrias de um tradutor?
Uma dificuldade que eu gostaria de frisar é a preservação de traços de linguagem, e de pensamento, presentes no original e que nos são estranhos, não nos parecem familiares, não se enquadram nos hábitos mentais vigentes em nosso meio – quero dizer, o meio do tradutor e dos seus leitores.
Mediante determinadas opções linguísticas, o tradutor tenta deixar pelo menos transparecer que há, ou houve, uma visão de mundo e da história diversa, consolidada numa cultura específica, da qual o original participa.
De outro lado, a tradução deveria ser uma troca, um veículo de intercâmbio cultural e de conhecimento recíproco.
Mas hoje em dia não existe troca: as traduções quase que só são feitas do inglês para as outras línguas.
No sentido inverso, a produção é estatisticamente nula (EUA e Inglaterra são os países que menos traduzem no mundo).
Hoje, a tradução é um processo unilateral. Isso nada tem de natural ou lógico e denota uma relação de dominação e não de troca. Infelizmente, nesse contexto, o tradutor pode se tornar uma espécie de agente involuntário dessa dominação.
Como começou a sua carreira em tradução?
Por necessidade e por acaso. Por motivos particulares, fui obrigado a reduzir à metade meu trabalho de professor do ensino médio e fundamental.
Como já era autor de três livros e tinha algum conhecimento em duas editoras, pensei em completar o orçamento com tradução.
Isso foi em 1990. Por sorte, justamente nessa ocasião, a demanda por tradução de livros começou a crescer muito, no Brasil.
Quantas obras já traduziu desde então?
Parei de contar. Me dá nervoso. Mas digamos que foram mais de cem.
Quais trabalhos marcaram de forma especial sua trajetória? Por quê?
Sem dúvida, a tradução de livros russos. Os motivos são muitos e até óbvios, se considerarmos o alcance dessa tradição literária.
No entanto, eu gostaria de ressaltar um aspecto, talvez, menos observado. À medida que fui traduzindo livros russos, logo me dei conta de um ponto-chave, que acabou produzindo um efeito profundo na minha maneira de encarar a literatura – e também outras coisas, por decorrência lógica.
Tratou-se da descoberta de que a literatura podia se relacionar com a sociedade de uma forma completamente distinta daquela que, hoje em dia, e já desde muito tempo, tomamos como natural e universal.
Mais do que o talento ou as idiossincrasias dos autores, tomados individualmente, é o teor da relação entre a literatura russa e a sociedade russa que determina o conteúdo e a forma das obras, bem como a amplitude da visão dos escritores, dos críticos e dos leitores.
Trata-se de um fator que, agindo sobre o conjunto, incide também sobre cada livro e impulsiona seu alcance histórico.
Ou seja, na literatura russa, uma sociedade, uma população inteira, com seus conflitos e suas polêmicas, traduz a si mesma, para poder se ler.
A experiência histórica prova que isso é possível e que, para a literatura, é até desejável.
Em 2017, a Mundo Cristão lançou nova tradução de Uma confissão, um clássico escrito por Liev Tolstói. Como foi para você participar do projeto? Quais foram os desafios que enfrentou ao traduzir uma obra de tal importância no meio literário?
A tradução desse livro não envolve soluções especialmente inventivas, poéticas nem de grande complexidade técnica.
É um texto simples, claro, em que um arcabouço lógico e racional se desenvolve sobre o fundo de uma angústia implacável, densa, que pressiona cada parágrafo, sem dar trégua.
O texto em português devia ter em mente a preservação desses polos de tensão e de força, para envolver o leitor no ambiente mental do original.
Quais conselhos daria para aqueles que têm interesse em atuar com tradução?
Estudar e trabalhar. Apurar a consciência crítica. Ter paciência. Pôr em primeiro lugar a língua portuguesa.
Uma mensagem aos leitores MC e, em especial, aos tradutores que celebram este dia dedicado à profissão.
Mesmo quando se trata de livros horríveis, traduzir é bom,
é uma experiência enriquecedora para o tradutor (e, nesse caso extremo, talvez só para ele, infelizmente).
Mas o que isso significa?
É uma pergunta que eu me faço e que eu suspeito ter imensos desdobramentos.
Entretanto desconfio também que uma dessas ramificações tenha a ver com aquela ideia tão simples,
tão bem conhecida desta editora, aliás, mas tão difícil de traduzir: Amemos o próximo, como amamos a nós mesmos.
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