Por Augustus Nicodemus em “Polêmicas na Igreja”
Frases de efeito do tipo “Jesus é maior do que a religião” ou “Eu sigo Jesus; cristianismo é religião” não ajudam muito.
Elas precisam de algumas definições para fazer sentido. Infelizmente, afirmações como essas são postadas em redes sociais, divulgadas em artigos na internet ou mesmo publicadas em livros sem que sejam esclarecidas pelos devidos argumentos.
Certa vez, deparei com a seguinte afirmação: “Jesus odeia religião”. Conheço quem afirmou isso e sei em que sentido o fez.
E concordo com essa pessoa, com base no sentido que ela pretendeu dar à sua frase.
Mas, como há muita gente que não sabe nem quem é Jesus, nem o que é religião, talvez seja melhor esclarecer alguns pontos.
A religião que Jesus “odiou” foi o judaísmo legalista e farisaico de sua época, por se tratar de uma distorção da religião que Deus havia revelado a Israel e pela qual os profetas tanto lutaram.
E pode-se verificar essa distorção ao longo de toda a história de Israel. Antes do cativeiro babilônico, a religião judaica foi deturpada e tornou-se uma espécie de sincretismo: apesar de Javé ser o único Deus verdadeiro, os judeus também adoravam Baal e outros ídolos pagãos.
Contudo, ao que parece, a deportação para a Babilônia os curou da idolatria pagã.
Pouco depois, com o movimento dos macabeus e a resistência às tentativas de helenização, surgiram os fariseus e seus escribas.
Em reação aos intentos helenísticos dos dominadores gregos, os fariseus criaram leis e mais leis — além daquelas deixadas por Moisés — com a finalidade de manter Israel cada vez mais separado dos outros povos.
Os rabinos, isto é, os mestres judeus, transformaram em lei a graciosa revelação que Deus fez acerca de si mesmo; assim, instituíram uma religião legalista e baseada no mérito pessoal e coletivo.
Logo, não se pode dizer que Jesus é contra a religião propriamente dita, mas que ele refuta correntes religiosas legalistas, meritórias e contrárias à Palavra de Deus.
E, certamente, o cristianismo autêntico, que nasceu com Jesus, não pode ser incluído entre elas.
Também é importante lembrar que Jesus tomou parte em tudo o que julgava apropriado na religião de seu tempo, isso porque, embora o judaísmo do primeiro século tenha acrescentado muitas coisas ao que Moisés ensinara — e interpretado erroneamente outros aspectos da lei mosaica —, ainda retinha muito da revelação original de Deus, preservada nas Escrituras hebraicas.
Jesus, portanto, não apenas se submeteu a várias ordenanças da religião sob a qual nasceu, como foi incisivo ao praticá-las: foi circuncidado; passou pelo batismo nas águas, por intermédio de João; frequentou o templo durante as festas religiosas; encaminhou ao sacerdote aqueles a quem curou, para que se cumprissem as determinações legais; orou; deu esmolas; pagou o imposto do templo; e celebrou a Páscoa com seus discípulos.
Portanto, é um exagero dizer “Jesus odeia religião” sem fazer constar os devidos esclarecimentos.
E tem mais. Depois da morte, da ressurreição e da ascensão de Jesus, bem como da descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes, os apóstolos logo se organizaram em comunidades, elegeram líderes, elaboraram declarações de fé, escreveram livros que constituiriam as Escrituras, recolheram ofertas, estabeleceram locais de reunião — ou seja, manifestaram tudo o que caracteriza uma religião.
Em certo sentido, então, é possível afirmar que o cristianismo é, sim, uma religião, visto que preserva aspectos comuns às religiões. É claro que para nós, cristãos, o cristianismo é a única religião verdadeira, pois somente nele Deus se revela na mediação de seu Filho, Jesus Cristo, o único caminho para o Pai.
Por fim, não se pode negar que no decorrer dos séculos o cristianismo foi amplamente corrompido, sucumbiu diante do poder e das riquezas, misturou-se com o Estado, desfigurou–se, perdeu de vista sua missão e sua vocação.
Mas, toda vez que isso ocorreu, o cristianismo deixou de ser a religião verdadeira para ser uma religião falsa. Assim, o correto é dizer que Jesus odeia o legalismo religioso, sobretudo aquele que se instala dentro do cristianismo.
Errado e injusto é afirmar que Jesus se opõe a toda e qualquer forma de cristianismo e oferecer como justificativa frases de efeito do tipo “Jesus odeia religião”.
Cabe a nós cuidar para que nosso relacionamento com o Senhor seja baseado em sua Palavra e manter nossa consciência cativa a seus preceitos, em vez de nos deixar levar por ensinamentos humanos.