Não muito tempo atrás o calvinismo se encontrava em posição de privilégio teológico no Brasil. Era a corrente mais valorizada entre os jovens apegados aos estudos de teologia. Pastores reformados ganharam notoriedade por suas pregações que expunham de modo explícito suas referências teóricas – João Calvino, como exemplo icônico. Muitas igrejas não calvinistas passaram pelo desafio de terem jovens dissidentes, devido ao interesse crescente por uma teologia que encontrava eco em pouquíssimas igrejas brasileiras até então. No YouTube, o novo calvinismo (new-calvinism) divulgado por John Piper e R. C. Sproul e outros transformou-se em um seminário teológico informal. Por sua vez, as editoras reforçaram a publicação de literatura reformada, traduzindo livros que não tinham qualquer chance de sucesso, não fosse essa nova configuração no cenário intelectual do nosso protestantismo.
Porém, é preciso observar que essa mudança não aconteceu de forma generalizada.
Na verdade, foi a internet que, como de costume, deu a entender que o mundo evangélico voltou todos os olhos ao calvinismo. Lembro-me de ensinar a TULIP (acróstico calvinista que ensina o funcionamento da salvação individual) para irmãos e irmãs que não faziam qualquer ideia de que sua igreja (histórica e reformada) adotava uma forma nada hegemônica de pensamento. A reação era de choque na maioria dos casos: “Como assim, Deus escolhe uns e outros não?”. Ainda assim, o calvinismo soava mais intelectual e, portanto, mais crível. E embora a teologia não se trate de um jogo de soma-zero, minha percepção é de que presenciamos um certo tipo de presunção calvinista: uma intuição de que o calvinismo destravou uma chave de compreensão muito superior às outras abordagens teológicas. Tanto foi assim que a principal discussão popular da teologia era a disputa calvinismo-arminianismo. Quem estava correto sobre os mecanismos da salvação eterna? Parecia óbvio a muitos: o calvinismo era por excelência a formulação teórica do próprio Evangelho. Portanto, não é exagerar que por uma série de fatores, que incluem o prestígio intelectual de muitos calvinistas e suas instituições, o calvinismo conseguiu um lugar de grande privilégio na teologia do Brasil.
Porém, não se pode duvidar da capacidade das pessoas de perceber quando algo está indo mal. Bastou que novas publicações pentecostais, carismáticas e arminianas de excelência surgissem, dando lugar à novas formas de compreensão da fé cristã, e que grandes figuras proponentes do novo calvinismo (como John MacArthur e Mark Driscoll) demonstrassem erros incontornáveis, para que este tipo de calvinismo entrasse em uma crise de credibilidade.
O discurso beligerante parecia parte do pacote do sermão expositivo.
A generosidade proveniente da graça irresistível de Deus não se aplicava aos críticos do calvinismo. A afirmação veemente da depravação total parecia vir com um tom de moralismo. A confissão de Westminster tornou-se canônica e a TULIP atribuída ao próprio Calvino como o suprassumo da sua obra (já era falecido quando o acróstico foi formulado como forma de combate aos remonstrantes). Ao meu ver, este calvinismo está em crise e um tipo de ranço teológico já está instalado em muitos âmbitos do nosso mundo evangélico e fora dele – tanto nos congressos acadêmicos quanto em livros e falas de novos nomes da teologia (sobretudo da missiologia e eclesiologia).
Mas não desejo desviar o foco: a questão aqui não é o descarte do calvinismo, mas uma revisão crítica e necessária, afinal, rejeitar o calvinismo como um todo (e até mesmo este tipo popularizado) é repetir o que acabamos de apontar, supondo que em seu lugar outra teologia detém todo o saber da Palavra de Deus. Creio que o melhor caminho está neste entremeio onde há a junção entre a crítica e o reconhecimento. Por isso afirmo: certamente o calvinismo precisa de revisões. Mas e se pudéssemos revisitar outros calvinismos para somar em nossa experiência teológica? E se houver alternativas que já realizam críticas internas, bem elaboradas e válidas para o conhecimento cristão de hoje? Quem sabe assim podemos expurgar o ranço da crise do calvinismo.
Diferente do novo calvinismo (new calvinism), pesquisei durante meu período de mestrado o Neocalvinismo. Estou ciente de que o nome pode confundir e que o ranço pode contribuir para que alguém diga que tudo isso é parte de uma mesma coisa. Garanto que não. Pelo menos para mim, o Neocalvinismo pode ser uma tradição alternativa, que obviamente pertence ao calvinismo histórico, mas difere substancialmente do novo calvinismo. Este tipo é preocupado com questões da vida, encoraja o diálogo honesto com outras formas de pensamento e parece sincero quanto às suas pretensões. Apesar de ser pouco conhecido (e quando conhecido, é facilmente desviado por mal entendidos), este calvinismo é marcado por nomes que não podem ser encaixados em categorias como conservador-progressita ou fundamentalista-liberal. Abraham Kuyper, Herman Bavinck, Herman Dooyeweerd, Richard Mouw, Jonathan Chaplin e tantos outros representam uma forma diferente de lidar com os problemas teológicos, que fizeram e fazem constantes melhorias no campo reformado e são mais propensos à generosidade intelectual.
É claro, não se pode achar que no Neocalvinismo se encontra o mais alto saber da fé cristã ou o tipo irrecusável de calvinismo. Nem superior a todas as outras teologias nem livre de críticas importantes, quero apresentar o Neocalvinismo apenas como uma alternativa válida, que merece a devida atenção. A melhor forma de fazer isso, ainda que soe uma bela propaganda, é se inteirar sobre as bases deste calvinismo, principalmente através do livro publicado pela Mundo Cristão que tive o prazer de escrever, sintetizando os pontos que considero mais importantes. O Neocalvinismo pode ser uma descoberta interessante para nos ajudar a ir em direção a um próximo estágio da situação de crise: uma reapropriação consciente do calvinismo, justamente onde estão, juntas, a crítica e o reconhecimento.
Termino contando um brevíssimo episódio: em um congresso acadêmico recente, tive o prazer de conhecer dois professores a quem eu devo o reconhecimento de terem me auxiliado a expurgar meus próprios ranços teológicos, que são Matthew Kaemingk, teólogo e professor da Fuller Seminary, e George Harinck, historiador e professor da Universidade Livre de Amsterdã. Ambos consideram-se neocalvinistas e compartilham da percepção do calvinismo em crise, que também acontece em outros lugares do mundo. Ao explicar meus problemas com a situação atual, principalmente do que considero ser uma leitura equivocada do próprio Neocalvinismo, os dois professores não tentaram me convencer da superioridade de sua tradição, mas me lembraram de que o calvinismo, por sua própria natureza, deve ser cada vez mais humilde e hospitaleiro, pois se afirma a plena dependência da soberania e graça comum de Deus, deve fazer disso uma forma de vida. Nesse sentido, convido aos que compartilham da mesma percepção da crise do calvinismo a elevar o debate de forma madura, aprendendo com os antigos e novos calvinistas, do calvinismo de Calvino, de Piper ou do Neocalvinismo.
2 Comentário
João Campos
Mais uma “caixinha” teológica redutora na compreensão da graça de Deus!
Parabéns pela coragem da publicação! Vale a reflexão… https://www.ultimato.com.br/comunidade-conteudo/duas-dentre-tantas-senhoras-relato-de-uma-visita
Delio Santos
Não faz muito tempo que tive meu primeiro contato com o Calvinismo. Pelo que li nessa exposição do Neocalvinismo, foi justamente essa versão que me foi apresentada, portanto não conheço a outra versão mais radical do Calvinismo.