“Estar a sós com Deus é entrar no lugar de pertencimento, estar em conexão com a fonte de sentido da nossa realidade e receber a vida de que precisamos para viver o dia que está diante de nós”, Vanessa Belmonte
Convidamos autores e líderes da igreja evangélica brasileira para uma série intitulada “retorno ao básico”, com o objetivo de abordar temas centrais da fé cristã, como um convite a retomar as práticas espirituais que sustentam, direcionam e edificam. Por meio dos artigos da série, queremos chamar a atenção do leitor para o é basilar e dá vigor à caminhada, alimenta a espiritualidade e nos aproxima de Deus, ao que é e deve ser simples.
No artigo a seguir, Vanessa Belmonte, professora e escritora, convida o leitor a conhecer dois exercícios espirituais, a solitude e a statio, e destaca a importância da pausa intencional, dos momentos exclusivamente dedicados à oração, reflexão, meditação na Palavra e comunhão com Deus. Por meio de uma abordagem inspirativa, a autora mostra como colocar tais exercícios em prática e oferece uma rota para o cristão que está cansado do excesso de atividades e deseja encontrar alegria no tempo presente.
Passar tempo a sós com Deus: Solitude e statio
Em conversas com pessoas que encontro, é comum ouvir frases como “estou bem, na correria”, “desculpe a demora, estou muito ocupada esta semana”, “não consegui responder à mensagem”, “desculpe-me, não deu tempo”… e outras semelhantes. De modo geral, todos nós temos sentido o ritmo cada vez mais acelerado nos conduzir, e isso está se tornando normal.
Não apenas nos sentimos sobrecarregados em um momento específico, mas percebemos as demandas sempre constantes e a sensação de que o tempo não é mais suficiente para lidar com todas elas. Muitos fatores podem influenciar tais mudanças de ritmo e percepção do tempo, sendo o uso da tecnologia um dos fatores que afeta diretamente nossa rotina diária.
Em um mundo sempre ocupado e com pressa, desenvolvemos hábitos de falta de atenção e perdemos a manifestação de sentido nas pequenas coisas. Em meio ao cansaço e esgotamento, percebemos que caminhamos como mortos vivos, não como pessoas cheias de vida. A vida que nos é oferecida na história contada pelo tempo, porém, é tão exuberante que tem o poder de nos transformar, curar, fazer inteiros e completamente vivos — essa é a realidade da nova vida que nos é oferecida para ser vivida em meio às nossas demandas atuais.
Este se torna nosso desafio: aprender a encontrar a alegria e a rejeitar o desespero no momento em que estamos vivendo agora. Em meio às pequenas pressões e ansiedades, precisamos aprender a confiar em Deus, a olhar para a cruz e a nos apropriar do que ele já fez por nós. A depender dele, a esperar com fé e a agir não baseados em nossa própria força ou entendimento. Isso é retornar ao básico.
Exercícios espirituais
Dentre as práticas basilares da vida cristã estão os exercícios espirituais de passar tempo a sós com Deus, com calma, silêncio e intencionalidade, acalmando os muitos ruídos dentro de nós e ao nosso redor, para sermos capazes de ouvir a voz de Deus e recebermos o que precisamos para viver cada dia. Porém, na correria diária, até as atividades de oração e leitura bíblica ficam ignoradas pela falta de tempo e pelo cansaço. Como podemos lidar com isso?
Nesta reflexão, gostaria de apresentar duas disciplinas espirituais: a solitude e a statio, mas antes de você incluí-las como itens da lista de coisas a fazer hoje, convido-o a pensar nesse assunto através de outra lógica.
Este mundo no qual você e eu vivemos pertence ao Senhor. Nossa vida também. Tudo que fazemos ao longo do dia, fazemos para Deus, com a ajuda dele e por meio dele. Assim, separar um tempo para estar com Deus não é o mesmo que separar um tempo para os outros itens de nossa lista. Estar a sós com Deus é entrar no lugar de pertencimento, estar em conexão com a fonte de sentido da nossa realidade e receber a vida de que precisamos para viver o dia que está diante de nós. E precisamos fazê-lo todos os dias.
A cada dia, o sol nasce e as misericórdias do Senhor se renovam sobre nós, de novo. A cada dia, respiramos e nos alimentamos, novamente. Vivemos momento a momento. Dependemos da vida que o Senhor tem para nos oferecer, pois pertencemos a ele. Isso é permanecer nele, ligados a ele, recebendo dele a vida através da qual os frutos de nossas mãos serão gerados.
Assim, quando acordamos, precisamos nos lembrar de que recebemos esse novo dia como dádiva e buscar nosso Senhor. Não precisa ser algo muito complicado e difícil de realizar: faça uma oração ainda deitado; entregue o dia ao Senhor que o chamou a existir; associe hábitos que você já pratica, como ler a Bíblia enquanto toma café da manhã, acompanhar um podcast de meditação bíblica enquanto lava a louça ou ouvir um trecho das Escrituras enquanto faz uma caminhada.
Solitude
Precisamos de solitude para prestarmos atenção em Deus. A solitude é uma disciplina cristã que consiste no convite para nos retirarmos da multidão, da companhia dos outros, e assim estarmos a sós com o Senhor. Ela cria o espaço para que as outras disciplinas sejam exercidas, como o silêncio, a oração, o estudo e a meditação nas Escrituras. Para muitos, é um grande desafio ficar sozinho; quando isso é inevitável, ligam algum ruído para amenizar o vazio do silêncio.
A solitude é uma disciplina de abstenção da companhia de pessoas que nos ajuda, posteriormente, a nos engajar de maneira restaurada com os outros. Ela nos liberta do que nos impede de amarmos uns aos outros, porque, na solitude, somos expostos ao amor de Deus, do qual necessitamos tanto, mas para quem estamos sempre ocupados demais para dedicarmos nossa atenção. A solitude é um encontro com Cristo e, por isso, seu exercício nos liberta do que pode estar nos oprimindo.
Esse tempo a sós com Deus é necessário para que possamos nos engajar adequadamente com todas as demais coisas que fazemos em um dia comum: o trabalho, as responsabilidades, as escolhas e os relacionamentos.
Podemos, então, praticar a solitude reconhecendo a importância de termos momentos a sós. Aproveite os primeiros momentos da manhã, antes da família acordar, e crie espaço ao longo da sua rotina para inserir momentos de solitude: preparar uma xícara de café ou chá e sentar em silêncio no jardim; entrar no seu quarto e avisar os demais da família para não chamarem você; fazer uma caminhada em silêncio observando ao redor; separar algumas horas do dia para se retirar e ficar a sós com Deus.
Statio
Outra disciplina também importante em meio a uma rotina cheia de demandas é a statio. Ela tem a ver com pausas, esperas intencionais e o alinhamento de todas as nossas atividades, sintonizando nossa vida com a fonte que sustenta tudo que fazemos, e de onde recebemos o que precisamos para continuar. Vai de encontro com os ritmos apressados, os atrasos constantes, a correria e, por isso, nos ajuda a parar e viver o que está diante de nós agora, a estar presentes e participar do que Deus está fazendo em nós e através de nós. Como consequência, nos ajuda a entregar os resultados de tudo que fazemos a Deus.
Muitos dos nossos dias de trabalho estão cheios de reuniões. Nesse contexto, praticar a disciplina espiritual da statio corresponderia a chegar dez minutos mais cedo antes de uma reunião começar, seja presencial ou virtual, e, nesses dez minutos, orar pela reunião, pelas pessoas, pelo assunto que será tratado, pedir orientação ao Senhor, para que ele conduza tudo de acordo com sua vontade.
O ato de esperar intencionalmente interrompe nosso modo de produtividade e nos ajuda a lembrar da presença de Deus aqui e agora, é uma oportunidade de fazer uma pausa, respirar profundamente e orar para que nós e as pessoas com quem estivermos participemos juntos do que Deus fará em nossa próxima reunião, evento ou atividade.
Uma das razões pelas quais nos atrasamos o tempo todo é porque, geralmente, odiamos esperar. Ficamos impacientes e frustrados, buscamos distrações e não conseguimos descansar. Assim, a statio também se torna uma disciplina que nos ajuda a lidar com a espera sem recorrermos às distrações, como as redes sociais, os podcasts ou até mesmo os livros.
Nós aceitamos a espera, nós intencionalmente criamos espaço para ela em nossa rotina. Nele, ou seja, neste espaço, nos encontramos com Deus através da oração. Esse espaço se torna, assim, um momento sem pressa para ouvir Deus, uma pausa para nos ajudar a apreciar sua presença amorosa em meio às reuniões e aos compromissos diários.
Faça estes exercícios em relação às tarefas diárias. Por exemplo, você vai ligar para alguém, então, antes de ligar, ore por essa pessoa e peça para o Senhor conduzir a conversa. Você tem uma consulta médica? Chegue mais cedo para orar pelo médico e sua equipe, pelo diagnóstico e tratamento, pelas demais pessoas que também estão doentes aguardando na sala de espera; ore pelo consolo do Senhor em meio à doença.
Você tem uma reunião? Chegue mais cedo e ore pela equipe de trabalho, pelos clientes, pela criatividade e direção nas decisões que serão tomadas. Tem uma aula? Chegue mais cedo e ore pelos professores e demais alunos, para que o conhecimento gere transformação e dê frutos.
Há uma atividade na igreja — um culto, uma reunião de grupo ou um ensaio? Chegue mais cedo e ore pela liderança que conduzirá o estudo; ore pelas pessoas que virão, para que o Espírito Santo prepare o terreno dos corações para receber a Palavra e produzir frutos que permaneçam; ore por conversões e pelo fortalecimento dos irmãos.
Uma oportunidade que o Senhor nos dá
Solitude e statio são duas disciplinas espirituais que nos ajudam a retornar ao básico e a nos lembrar de que não vivemos para nós mesmos. Ao protegermos esses momentos a sós com Deus ao longo de um dia comum, experimentaremos mais vida e alegria ao executarmos a rotina.
Viver o momento presente em relacionamento com Deus é uma oportunidade que o Senhor nos dá todos os dias. As disciplinas espirituais nos ajudam a prestar atenção nisso e a viver conscientes da graça e da presença do Senhor em tudo que fazemos. Deus está nos ensinando a olhar além das circunstâncias visíveis e estressantes, para que vejamos o reino invisível que já está em ação, conduzindo, sustentando e agindo através de nós e de todas as coisas que fazemos.
*Com trechos dos artigos Solitude e Statio, da série Disciplinas Espirituais, publicada no blogue de Vanessa Belmonte. Para conhecer outros textos da autora, clique aqui.
Vanessa Belmonte é professora, worker do L’Abri Brasil, coordenadora dos cursos on-line da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²) e membro da Igreja Esperança em Belo Horizonte (MG). É autora do livro O Lugar da Espera na Vida Cristã (Thomas Nelson Brasil).
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