Reflexão escrita por Paulo Ayres Mattos, Bispo Emérito da Igreja Metodista, Professor Pesquisador da Faculdade Refidim, Joinville, Santa Catarina
Quando o apóstolo Pedro entrou na casa do centurião romano Cornélio, ele tinha acabado de passar por uma nova conversão. Simão Pedro não era uma pessoa má. Um tanto atabalhoado, precipitado e vacilante, sim; um sujeito mau, não.
Desde o início do ministério de Jesus na Galileia, Pedro abandonou tudo que tinha — que não era muita coisa, mas que lhe dava o suficiente para sustentar a família —, e passou a seguir Jesus. Teve a oportunidade de participar significativamente de momentos decisivos da vida de Jesus, de modo positivo algumas vezes; em outras, de modo negativo.
Após seu encontro com o Cristo ressurreto, se projeta como a principal liderança entre os discípulos de Jesus. No Dia de Pentecostes, ao ser revestido como o poder do Espírito Santo, se converte numa testemunha audaz e decidida das boas-novas do evangelho, alguém que não teme arguições nem mesmo perseguições dos da linhagem de Anás, o sumo sacerdote.
Apesar de Paulo se considerar chamado para pregar aos gentios, e Pedro, aos judeus, é Pedro quem primeiro vai evangelizar um gentio, o centurião Cornélio. Mas isso se tornou possível porque Pedro teve de passar por uma experiência sobrenatural para ter suas amarras étnicas rompidas de vez. Certamente, como pessoa, Pedro não poderia ser considerado “racista”. O problema de Pedro era com o que hoje tem sido chamado “racismo institucional”, ou seja, por motivos da instituição religiosa.
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Estruturas culturais, sociais, econômicas e religiosas
Mesmo batizado com o Espírito Santo, que o empoderou para pregar destemidamente o evangelho, curar Eneias e ressuscitar Dorcas em nome de Jesus, Pedro resistiu três vezes em êxtase espiritual à visão celestial que lhe ordenava “mate e coma!”. Sua resposta foi em termos da proibição judaica cultual: “jamais comi coisa alguma que fosse considerada impura e imprópria”, mesmo quando a voz celestial lhe retrucou, “Não chame de impuro o que Deus purificou” [itálicos meus]. Sem entender o que estava acontecendo, só aceitou acompanhar os três emissários de Cornélio — que, na revelação de um anjo, receberam a ordem de procurar em Jope um “tal” Simão Pedro — quando o Espírito Santo lhe deu um forte empurrão, “desça e vá encontrar-se com eles. Não hesite em acompanhá-los, pois eu os enviei” [itálicos meus].
Se não fosse a ação direta de Deus, Pedro nunca teria se dirigido ao encontro de Cornélio em Cesareia, a capital romana da Província da Judeia. Certamente, Pedro não nasceu racista. Ele foi ensinado a ser “racista” pela família, pela comunidade onde nasceu e cresceu e, o pior de tudo, por sua religião. Repito, Pedro, como pessoa, era um ser humano como qualquer um de nós, com suas virtudes e defeitos. Como indivíduo refletia a cultura de sua sociedade. Sua dificuldade em entender e atender a estranha revelação exatamente enquanto orava na hora do almoço deveu-se ao legalismo “racista” do judaísmo tardio.
As estruturas culturais, sociais, econômicas e religiosas da sociedade à qual Pedro pertencia determinavam que os gentios fossem “teologicamente” considerados como “impuros e impróprios” [itálicos meus]. Foi essa a reprimenda que recebeu dos “apóstolos e outros irmãos da Judeia”: “Você entrou na casa de gentios e até comeu com eles!”. E só se dobraram à evidência da conversão de Cornélio e toda sua casa aceitando que “Deus deu aos gentios o mesmo privilégio de se arrepender e receber a vida eterna”, quando Pedro, ao terminar sua defesa, declara: “quem era eu para me opor a Deus?”.
Mesmo assim, cristãos judaizantes insistiam em querer submeter crentes gentios a ritos judaicos antes de serem batizados. Paulo é que teve de enfrentá-los em diversos lugares e momentos de seu constantemente questionado apostolado. Gentios, de certa forma, continuavam sendo considerados “impuros e impróprios”, tal como as pessoas afrodescendentes por este nosso Brasil afora.
Ao ouvirem isso, pararam de levantar objeções e começaram a louvar a Deus, dizendo:
“Vemos que Deus deu aos gentios o mesmo privilégio de se arrepender e receber a vida eterna!”.
Atos 11.17-18, NVT
Panorama histórico
Recentemente, no Brasil e em outras partes do mundo, particularmente no país de maior influência evangélica, temos assistido lamentáveis acontecimentos motivados pelo racismo. Violências de todo tipo por razões religiosas têm sido cometidas contra pessoas de cor, gênero, nacionalidade, posição social e religião diferentes. No caso brasileiro, grande parte do racismo institucional incrustado na sociedade é resultado de nosso longo e tenebroso sistema escravocrata.
Nosso passado econômico, político e social — ainda presente numa cultura de marginalização e exclusão de tudo que tem a ver com modos de pensar, viver e sentir dos povos africanos e seus descendentes — acabou por produzir o chamado racismo institucional. O racismo, portanto, é fruto da escravidão que desumaniza as pessoas escravizadas trazidas da África para as Américas para garantir a exploração colonial, que as transformou na mercadoria mais lucrativa no chamado Novo Mundo.
O racismo institucional entre as denominações evangélicas presentes no Brasil é parte de todo este passado histórico de nossa sociedade. Por um lado, o catolicismo cultural de cada pessoa nascida e criada no Brasil, quaisquer que sejam suas crenças religiosas. Por outro, as três missões evangélicas norte-americanas que aqui se estabeleceram na segunda metade do século dezenove. Duas delas, a metodista e a batista, vieram do sul dos Estados Unidos, após a Guerra Civil naquele país. A terceira, a presbiteriana, teve parte de seus missionários oriundos do norte dos Estados Unidos e outra do sul.
Processos de divisão dessas três denominações entre as igrejas do Norte e do Sul foram motivados pela questão da escravidão e se deram anos antes da guerra secessionista. As denominações sulistas deram o respaldo religioso e teológico para a justificação da escravidão naquele país. Não foi à toa que lideranças confederadas eram devotos evangélicos, como o famoso General Jackson, que orava e jejuava antes de sair para as batalhas.
Os missionários e missionárias que para aqui foram enviados a partir de 1859, não poderiam ser considerados racistas enquanto pessoas. Testemunhos históricos, especialmente fotografias, provam que a missão buscou atingir com sua pregação pessoas brancas e pretas desde seus inícios. O primeiro missionário evangélico a chegar ao Brasil em 1836, o metodista R. Justin Spaulding, segundo o historiador D. A. Reily, escreveu: “Temos duas classes de pretos: uma fala inglês, a outra, português. Atualmente, parecem muito interessados e ansiosos por aprender…” [História documental, São Paulo: Editora ASTE, 1984].
Entretanto, tanto o racismo do catolicismo brasileiro como o racismo do inconsciente coletivo dos missionários do protestantismo do Sul dos Estados Unidos acabaram por marginalizar e excluir a formação de lideranças pretas, apesar de suas raras exceções. A obra “Negro Não Entra na Igreja — Espia da Banda de Fora” [Editora UNIMEP, 2000], do Prof. José Carlos Barbosa, afirma, segundo a Profa. Cristina Kelly da Silva Pereira, que “o protestantismo de missão foi omisso em relação à luta contra a escravidão; … Mas, no que tocava à escravidão e à situação da negritude, não foram temas de seus interesses, tampouco assunto de suas preocupações” [Revista Eletrônica Correlatio n. 18, dez. 2010, p. 103].
Segundo o missionário batista Asa Routh Crabtree, “o Brasil era como os Estados Unidos, tinha escravos, e os missionários enviados pela Convenção Batista do Sul não podiam sentir-se constrangidos a combater a escravatura e assim envolver-se na política do país” [História dos Batistas do Brasil até 1906. Rio de Janeiro. Casa Publicadora Batista, 1962].
A verdade é que, escondidos atrás de uma interpretação destorcida do texto paulino que diz: “Não há mais judeu nem gentio, escravo nem livre, homem nem mulher, pois todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gl 3.28), segundo o Pastor Marco Davi de Oliveira, os “evangélicos, em geral, alimentam a ideia de que existe igualdade entre os fiéis, e isso tem sido motivo de orgulho para muitas denominações, sejam elas históricas ou pentecostais. Porém, esse mito tem sido usado para esconder o problema real do racismo na igreja evangélica brasileira” [“A Religião Mais Negra do Brasil’, Editora Ultimato, 2018].
Lideranças predominantemente brancas
No caso dos pentecostais clássicos, que não tinham qualquer relação com as denominações sulistas norte-americanas, a situação tem a ver com as populações brasileiras que foram atingidas pela pregação pentecostal em suas primeiras décadas.
A Congregação Cristã dirigiu-se principalmente às colônias de imigrantes italianos e suas famílias em São Paulo e no Paraná, como indica a prevalência do idioma italiano até a nossa entrada na Segunda Grande Guerra, um tanto desajeitada, em 1942. A membresia e a liderança da Congregação até hoje são em grande parte de pessoas brancas de origem italiana.
As Assembleias de Deus, fundadas no Pará por obreiros suecos independentes, desenvolveram sua pregação particularmente entre as populações imigrantes nordestinas na Amazônia e, posteriormente, com o fim do ciclo da borracha, com o regresso dos já evangelizados seringueiros e suas famílias no sertão nordestino. Historicamente, o interior do Nordeste sempre foi uma região pobre com sua economia baseada na pecuária e com uma população majoritariamente branca e mestiça, sem maior necessidade de importar grande número de escravos africanos.
Ainda hoje algumas das lideranças assembleianas mais importantes são nordestinos brancos. Bispo Manuel Ferreira e Pastor José Wellington são nordestinos: Ferreira, nascido em Arapiraca (Alagoas); Wellington, em São Luís do Curu (Ceará). Ainda quando o Pr. Marco Davi de Oliveira afirma que o pentecostalismo é a religião mais preta do Brasil, com cerca de 60% da população evangélica brasileira, a verdade é que, com certas exceções, o poder denominacional esteve, está e, ao que tudo indica, estará nas mãos de pastores brancos.
Assim é possível entender a argumentação de Inês Almeida Ribeiro, doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisadora das área de religião, identidade, racismo e intolerância religiosa, quando afirma que “O racismo nunca se colocou como uma questão nas igrejas protestantes e pentecostais que acabavam reproduzindo a máxima de que não havia racismo na sociedade brasileira. A crença na ‘democracia racial’ fez acreditar que as relações da irmandade cristã estariam salvaguardadas do racismo. Contudo, o que se veio a demonstrar é que estas igrejas, como instituições presentes numa sociedade onde o racismo se faz presente, acabavam por reproduzi-lo” (“A questão racial nas igrejas evangélicas”, Jornal Eletrônico Sete Margens, disponível em https://setemargens.com/a-questao-racial-nas-igrejas-evangelicas/).
Vencer o racismo institucional
Para vencer o racismo institucional recorrente em nossas relações pessoais e sociais, as igrejas evangélicas brasileiras precisam passar pelo mesmo processo de conversão que foi experimentado pelo apóstolo Pedro em Jope e que abriu as portas para a evangelização dos gentios, tornando possível o que chamamos hoje de “cristianismo global”. Mesmo quando se constata que as pessoas pretas como indivíduos alcançam nas igrejas evangélicas uma valorização não experimentada fora de suas comunidades de fé, muito mais entre as igrejas pentecostais, a verdade é que dentro delas ainda sofrem as consequências do racismo cultural brasileiro.
O “racismo institucional” de Pedro e dos outros apóstolos limitava a evangelização a gente de seu próprio povo (claramente descrita nos primeiros capítulos dos Atos dos Apóstolos), não lembrando eles de como Jesus quebrou tal “racismo institucional” em diversos momentos de seu ministério terreno, bastando para isso só relembrar seu relacionamento com o povo samaritano.
Até sua extática experiência em Jope, Pedro e toda a comunidade cristã primitiva não incluíam gentios. Em nossos dias, ainda que crendo na contemporaneidade dos dons do Espírito Santo, me parece que uma revelação por visão sobrenatural já não se faz mais necessário. Não somos mais o Pedro perplexo sobre o significado de sua visão.
A violência perpetrada contra a descendência da população africana escravizada trazida ao Brasil por mais de três séculos e meio está todos os dias noticiada nos órgãos da imprensa escrita, falada e televisionada, bem como nas mais diferentes mídias que circulam na Internet. Por esses modernos meios de comunicação social, o Espírito Santo nos revela, desafia e exorta diariamente quando se noticia que pessoas pretas aqui e no estrangeiro são barbaramente discriminadas, perseguidas e assassinadas pelo pecado do racismo. Será que as comunidades evangélicas brasileiras já não ouvem mais o que o Espírito está nos dizendo?
No que diz respeito ao racismo institucional, nós, o povo evangélico no Brasil, precisamos ouvir o que o Senhor nosso Deus está dizendo às igrejas: “se meu povo, que se chama pelo meu nome, humilhar-se e orar, buscar minha presença e afastar-se de seus maus caminhos, eu os ouvirei dos céus, perdoarei seus pecados e restaurarei sua terra” [2Cr 7.14]. Que para tanto o Espírito Santo nos ajude.
Texto escrito por Paulo Ayres Mattos, Bispo Emérito da Igreja Metodista, Professor Pesquisador da Faculdade Refidim, Joinville, Santa Catarina, gentilmente escrito para o blogue Mundo Cristão.
Leia também:
“Cadeiras vazias e pulmões vazios”: Como o racismo esvazia nossa humanidade
3 Comentário
Paulo Pereira
Esse texto nos desafia a uma quebra de paradigmas institucionais e religiosos, para uma imersão aos valores de Cristo, nesses momentos de grandes conflitos ideológicos e eclesiais. No entanto, vejo que é mais uma questão de reconversão aos valores essências de Cristo. Hoje se faz necessário uma volta ao “primeiro amor”, para que a igreja ou, formadores de propostas religiosas, sejam mais protagonistas do que coadjuvantes.